Eu estava lá, no dia em que nasceu. Tão pequenina, piscando seus olhos preguiçosamente.
Eu estava lá, quando me chamou pela primeira vez, sua primeira palavra, seu primeiro chamado, foi por mim.
Eu estava lá, quando de seu primeiro passo, em minha direção.
Eu estava lá, quando apertando minha mão e com os olhos marejados de lágrimas, recusava-se a olhar sua primeira professora.
Eu estava lá, quando beijou pela primeira vez, escondida atrás de uma árvore.
Eu estava lá, quando entrou na sala apavorada, com as roupas manchadas de sangue.
Eu estava lá, quando adentrou o salão de baile, agarrada ao meu braço, feliz por ser enfim, uma moça.
Eu estava lá, enquanto juramentava, em nome de seus colegas, sonhos e promessas vãs daqueles que desejam mudar o mundo.
Eu estava lá, no dia em que ele me pediu que abrisse mão da companhia dela, e colocou um anel em seu dedo.
Eu estava lá, acompanhando-a ao altar, no dia em que acreditava ser o começo de sua vida.
Eu estava lá, para atender ao telefone, quando me ligou chorando, dizendo que tudo havia acabado mal e que eu precisava buscá-la.
Eu estava lá, quando recusara-se ao denunciar as agressões, dizendo que foram mútuas, um momento de fúria de ambos.
Eu estava lá, quando abriu o envelope do exame, com uma expressão que mesclava alegria e desespero.
Eu estava lá, e ela já não estava, um vazio, semanas sem um telefonema. Eu estava lá, mas ela estava com ele.
Eu estava lá, quando ela já não aparecia, pouco ligava e desculpava-se dizendo que cuidar da bebê exigia muito de si.
Eu estava lá, para atender ao telefone mais uma vez, em seu socorro, já tarde demais, longe demais.
Agora eu estou aqui, com minha neta agarrada ao meu pescoço, chorosa e sonolenta, cercado por gente que há anos não via, gente que nunca vi, atraída pelo cheiro de sangue, como moscas, como hienas. Eu sempre estive lá, mas lá nem sempre é o lugar certo.