quarta-feira, 25 de agosto de 2010

RETORNO



"Somente depois de ter andado por terras estranhas
É que pude reconhecer a beleza da minha morada.
A ausência mensura o tamanho do local perdido,
Evidencia o que antes estava oculto, por força de costume.
Olhei minha mãe como se fosse a primeira vez.
Olhei como se eu voltasse a ser criança pequena
A descobrir-lhe as feições tão maternas.
Abri o portão principal como quem abria um cofre
Que resguardava valores iincomensuráveis.
As vozes de todos os dias estavas reinauguradas
Deitei-me no colo de minha mãe como se quisesse
Realizar a proeza de ser gerado de novo.
Suas mãos sobre os meus cabelos pareciam devolver-me a mim mesmo.
Mãos com poder de sutura existencial....
Era como se o gesto possuísse voz, capaz de me dizer:
Dorme meu filho, porque enquanto você domir
Eu lhe farei de novo.
Dorme meu filho dorme."

Texto extraído do livro "QUEM ME ROUBOU DE MIM?" Pe Fábio de Melo.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

encontos anônimos I

a moça e o mendigo

no dia em que fui pega espancando um mendigo só gritavam absurdo! que absurdo! como é capaz de fazer isso uma garota tão bonita? não entendi a reação das pessoas...

o mindingo-digo-mendigo vale quanto? 75 centavos a menos depois das compras, ouvi a mulher do terceiro absurdo pensar. para o homem do primeiro valia menos.

eu só queria que ele sentisse (mais) dor pois o odor é forte na calmaria.
mas ela veio e, quando o cheiro de merda e suor se fez presente mais uma vez no ar narinas boca etc. o homem, com os buracos da estrada no rosto e a gasolina do senhor a escorrer pelo nariz, me disse obrigado, moça. por nada.

o banho – ou como J. K. e R. enxergam os próprios corpos


a água escorre indiferente assim como pele músculo ossos e veias. J. sente na vagina e (resto de) pregas uma vida que não serviu para nada. não olhava para o corpo, que, afinal, não pertencia a ela.

nota-se que há espelhos por todo o banheiro. o corpo é belo. o corpo é belo. o corpo é belo. o corpo é belo. o corpo é belo. isso é tudo que precisam saber sobre R

encontos anônimos II

a outra personagem

voltava da rua ainda com aquele andar infantil e os olhos de carrasco. o vestido branco estava um pouco sujo.

sempre pensava no banheiro. sempre pensava. pensava no mendigo que acabara de espancar na rua. o sangue de sua menstruação descia do nariz enfiado em sua boceta. usava os dedos enquanto olhava pro corpo. K. lembrou-se então do cheiro e líquido que descia da face de seu pai estirado na rua. gozou.


chá de bebê

o pai de K. estava prestes a nascer. roupas para bebês, sim. obrigada! o homem que a acompanhava - um conhecido, talvez - mostrava-lhe camisetas como as de qualquer rescém-nascido.

não há identidade!
ANTIDADE
IDADE
DE
E a moça do caixa , que era três ou quatro reais menos práti-que-k demorou para acertar o cartão na máquina. K. pensava duas máquinas por quê?

por que esses dois corpos que são só pés ossos e ás me incomodam?

K. saiu da loja com o homem cuja face ignorava e microuniformes do botafogo, time pelo qual seu pai sempre torceu.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Eu sempre estive lá

Eu estava lá, no dia em que nasceu. Tão pequenina, piscando seus olhos preguiçosamente.
Eu estava lá, quando me chamou pela primeira vez, sua primeira palavra, seu primeiro chamado, foi por mim.
Eu estava lá, quando de seu primeiro passo, em minha direção.
Eu estava lá, quando apertando minha mão e com os olhos marejados de lágrimas, recusava-se a olhar sua primeira professora.
Eu estava lá, quando beijou pela primeira vez, escondida atrás de uma árvore.
Eu estava lá, quando entrou na sala apavorada, com as roupas manchadas de sangue.
Eu estava lá, quando adentrou o salão de baile, agarrada ao meu braço, feliz por ser enfim, uma moça.
Eu estava lá, enquanto juramentava, em nome de seus colegas, sonhos e promessas vãs daqueles que desejam mudar o mundo.
Eu estava lá, no dia em que ele me pediu que abrisse mão da companhia dela, e colocou um anel em seu dedo.
Eu estava lá, acompanhando-a ao altar, no dia em que acreditava ser o começo de sua vida.
Eu estava lá, para atender ao telefone, quando me ligou chorando, dizendo que tudo havia acabado mal e que eu precisava buscá-la.
Eu estava lá, quando recusara-se ao denunciar as agressões, dizendo que foram mútuas, um momento de fúria de ambos.
Eu estava lá, quando abriu o envelope do exame, com uma expressão que mesclava alegria e desespero.
Eu estava lá, e ela já não estava, um vazio, semanas sem um telefonema. Eu estava lá, mas ela estava com ele.
Eu estava lá, quando ela já não aparecia, pouco ligava e desculpava-se dizendo que cuidar da bebê exigia muito de si.
Eu estava lá, para atender ao telefone mais uma vez, em seu socorro, já tarde demais, longe demais.
Agora eu estou aqui, com minha neta agarrada ao meu pescoço, chorosa e sonolenta, cercado por gente que há anos não via, gente que nunca vi, atraída pelo cheiro de sangue, como moscas, como hienas. Eu sempre estive lá, mas lá nem sempre é o lugar certo.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

sem ti, tu ou lo.

agora eu agora nunca fui
nem v
oo de amanhã que se
partiu
no meio
da minha sala de assustar.

o avião de gelo derreteu
e a mão daquele moço
congelou
tão certo e perto do meu coração.

não vi a sua voz a me acenar
meus olhos?
o mesmo moço arrancou
cantando que os dois queriam ver demais.

os olhos até tentaram
des
pedir
perdão
até que a mão do homem
os congelasse
e o cu com classe dissesse não.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Uma Maria

Maria sempre tivera um irrefreável desejo de ser má. Quando criança se divertia em realizar pequenas travessuras envolvendo tapas nos amiguinhos da escola, beliscões nos primos mais novos e estragulamentos dos pintinhos da fazenda. Debaixo da brandura cálida de seu sorriso de menina, vivia em Maria uma verdadeira e inescrupulosa assassina da qual ninguém jamais desconfiou. Na adolescência, aliou-se a seu espírito maligno uma certa tendência à zombaria e à deliberada falta de respeito a qualquer posição hierárquica que lhe servisse de limite. A mãe sempre entendeu suas atitudes irrefreáveis como coisas da idade, e o pai nunca esteva lá muito presente para notar qualquer distúrbio de caráter que comprometesse a integridade de Mariazinha,como ele carinhosamente lhe chamava desde a infância. Nem mesmo as noitadas regadas a bebedeiras infinitas, os assaltos a lojas de conveniência e os roubos de carro pelos quais tiveram de responder judicialmente por ela, menor de idade que era então, fizeram com que estes generosos pais negassem seu amor, sua paciência e compreensão.
Um dia Maria cresceu. Sem fronteiras nem limites, Maria se apaixonou pelo bonito garçom que lhe servia vodcas num boteco de baixa procedência onde costumava passar as madrugadas. Depois de um tempo, Maria virou uma grande mulher: casada, bem amada, mãe e feliz. E nunca deixou de possuir aquele intenso desejo de matar, e é por isso que toda manhã depois da visita ao açougue, trata com frieza meticulosa e extremo vigor a carne que escolheu para o almoço, aquela que será a fonte de vida e de comunhão entre os seus.

terça-feira, 22 de junho de 2010

A história de J. ou uma mulher completa

A ideia de que toda mulher se torna completa somente após a maternidade atormentava J. Não gostava dos homens – mormente aqueles cuja aparência se encaixava nos padrões de beleza – mas queria algo que dependesse totalmente dela e de suas vontades. Já fazia isso com seu corpo quando, em ataques de fúria ou simples prazer sádico ou masoquista ou ambos esquentava agulhas em chamas de velas e as atravessava pelos mamilos enrijecidos.

Porém, como tudo na vida de J. – e, para ela, na vida de qualquer ser humano -, entediou-se ao longo dos anos com seu belo corpo (provavelmente pelo fato de ser belo) e decidiu que precisava de uma criatura para sua diversão.

Aos vinte anos precisaria de duas ou três doses de alguma bebida forte para criar coragem, mas aos trinta e quatro quantos homens você acha que teriam entrado em sua boceta? Foi ao bar, sim. Não para beber, mas encontrar um homem que estivesse bêbado o suficiente para pagar seu preço e sóbrio o suficiente para ter uma ereção.

Pulemos os detalhes do ato sexual. Não há romantismo nessa trepada.

Antes dos nove meses nascia L. Uma garota forte e feia como o pai. Escolhi bem, pensou J. Então, nos dois anos seguintes dedicou-se à saúde de sua filha, assim poderia prepará-la para a vida.

No quarto aniversário, o presente. Sim, velas e agulhas. Nos mamilos, púbis, axilas... a criança chorava e J. sentia em seu corpo cada dor infligida à sua criatura, o que fazia seu sexo umedecer cada vez mais num ritmo que obedecia àquele em que L. se contorcia.

Cresceu saudável, forte e feia como o pai. Mas sem J., que entediou-se mais uma vez e partiu à procura daquilo que – agora sabia – nunca haveria de completá-la.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Nove

Já estavam mortos quando geraram os dois filhos mais novos. Condenados por doenças infames e incuráveis. Ele pela picada de um barbeiro enquanto estocava milho no paiol, ela pela doença inominável.
Já não havia um pai quando a caçula nasceu, fora enterrado há uns cem metros da casa, para que ela pudesse ver da janela a cruz caiada de branco e um pequeno jardim de espadas de São Jorge e cristas de galo, feitos pelos sete filhos mais velhos. Estacas cercavam o pequeno cemitério para que os animais do dia, ou da noite, não perturbassem o descanso eterno daquele homem.
Dois anos depois, foi a vez dela. Morreu sozinha, num hospital, lembrando-se dos nove filhos que estavam longe, na fazenda, ou nas casas da tias para que pudessem estudar.  Pensou também naquele pedaço de sertão que ela e o marido um dia compraram, pagando com grande sacrifício, para criá-los. E agora se criariam sozinhos, no meio do mato, no meio do nada. Enterro de caixão fechado, rápido, de poucas lamúrias e muito cochichos. A única imagem que os pequenos guardariam da mãe era a de uma caixa de madeira de cor escura, com umas poucas flores por cima. Fora sepultada num cemitério de verdade, longe do marido pelo qual daria sua vida.
De volta a fazenda, uma assembleia de crianças decidia o que seria feito. Os três pequenos iriam para a cidade com a mais velha. Os meninos mais velhos voltariam para a fazenda para ajudar com a lida do gado. A outra menina maior também voltaria para cuidar dos irmãos.
Enquanto viviam o luto, morreram os gatos da mãe, como se numa praga, todos de uma só vez. Eram nove, um para cada filho, mas nenhum deles lhes tinha amor. Ao contrário, tinham sim muito rancor. Achavam que a mãe preferia os gatos, sempre roçando-lhe as pernas e os olhando com desdém. Poderia ter sido qualquer um, mas ninguém se preocupou em saber. Todos sentiam-se vingados e agradecidos até descobrirem a real função daqueles animais.
Uma noite, a mais velha adormeceu enquanto dava mamadeira a caçula. Acordou com o ardor de arranhões, achou que havia algo errado com a bebê. Tateou os móveis para encontrar os fósforos e lamparina, acendeu-a, aproximou-se da cama e horrorizou-se. Um rato roía os cabelos da irmã, onde o mingau da mamadeira havia derramado. Arrebatou a menina, o choro do susto, o coração disparado. Iluminou o quarto. Iluminou as vigas. Havia vários deles. Acendeu todas as lamparinas que encontrou ao seu redor, não dormiu protegendo a irmã e espantando os ratos de todos os cômodos onde dormiam seus outros irmãos. Ao amanhecer, arrumou o pouco há levar e partiu a cavalo com os três pequenos, acompanhada de um dos meninos mais velhos.
A praga acabou, outras vieram. Ratos, seca, carrapatos, piolhos. O tempo passava. Chegavam as férias e os nove irmãos se encontravam na fazenda. Mas parecia que cada vez mais, a fazenda se afastava do mundo, sempre mais longe. Os irmão iam se casando, vendendo suas partes aos outros irmãos e mudando-se para mais perto da cidade. Só restava o filho mais velho. Já não havia mais irmãos para cuidar. Lembrou-se de suas próprias filhas, morando na casa da tia mais velha para estudar, como ele, há muito tempo.  Vendeu a fazenda a um primo, assim poderia visitar a sepultura do pai, para orar e pedir conselhos sem resposta, como fizera ao longo de todos aqueles anos. Não voltou, nenhum deles voltou.
Quando o primo morreu, quase vinte anos depois, e a fazenda seria vendida, a filha mais velha resolveu buscar o que sobrava de seu pai. Muita burocracia, muita má vontade. Nenhum de seus irmãos quis voltar a fazenda. Sozinha testemunhou a exumação. A fazenda continuava muito longe. Chegou tarde em casa, com um saco laranja no porta malas, que não deveria estar lá. Aquilo no saco laranja, sacolejando ao longo de todo o caminho havia sido seu pai. No dia seguinte, o velho esqueleto encontraria seu par, numa sepultura que também não era visitada por nenhum dos nove filhos, ou dos dezoito netos, ou dos cinco bisnetos que nunca os conheceu.

sábado, 12 de junho de 2010

Até que a morte nos separe

Nem acreditava que enfim havia chegado em casa. Horas presa no trânsito, sentindo dores nas costas e nas pernas, os pés latejando dentro dos saltos e sentindo-se uma baleia aos nove meses de gravidez, já não havia muito de paciência com ela. Jogou-se no sofá e respirou fundo buscando um pouco do conforto do lar. Foi então que olhou para as malas prontas, ao lado da porta e as reconheceu de imediato. Eduardo apareceu andando calmamente pelo corredor.
- Luisa, você demorou...
Ela não respondeu, fixando o olhar nas malas. Começou a repassar em sua mente os ultimos seis meses. Meses onde se alternaram gritos, choro, copos quebrados e silêncios carregados de acusações.
- Luisa, precisamos conversar.
Silêncio. Não conseguia acreditar que estava acontecendo. Estava sendo abandonada pelo marido aos nove meses de gravidez. Não conseguia acreditar. Começou a sentir uma força subir do estômago e percebeu os olhos já marejados. Logo estaria aos prantos. Sim, logo estaria aos prantos e aos gritos. Como nos últimos meses de sua infeliz e não planejada gravidez. De repente, sentiu um lampejo de orgulho olhando para aquele belo homem parado a sua frente, vestido com roupas caras, usando sapatos italianos de couro e perfume importado. Tudo comprado com o dinheiro dela. Tudo. De repente a vontade de chorar e gritar começou a se transformar em um sentimento estranho, que ela até então não conhecia.
- Luisa, por favor... não vamos fazer disso uma novela. Você sabe que não temos mais condição de continuar com esse casamento... estamos nos matando! - silêncio - Olha, será melhor assim... eu já aluguei um apartamento e quando ela nascer, vamos dividir a guarda... - silêncio - Luísa, por favor... fale alguma coisa... - ela não conseguia falar.
Na verdade, sentia vontade de vomitar. Era isso, sentia vontade de vomitar olhando para seu belo marido, dez anos mais jovem. Como ele tinha coragem de fazer uma coisa dessas? Como esse homem sem qualquer talento, que não teria chegado a lugar algum na vida se não fosse por ela, estava tendo coragem de abandoná-la às vésperas de um parto de alto risco? Com certeza, o que estava sentindo agora poderia sim ser chamado de nojo. Muito nojo.
- Luisa! Páre com isso! Fale alguma coisa ou eu vou sair por aquela porta sem resolvermos essa historia como adultos. Eu vou pagar a pensão e você pode ficar com esse apartamento. Os outros bens nós resolvemos depois. Tudo que eu quero agora é apenas ir embora. Não precisa fazer essa cena de insultada! Não seja ridícula! - ridícula? Ele a havia chamado de ridícula? Quem esse homenzinho de merda achava que era?
- Eu posso ficar com o apartamento? - começou a falar calmamente - Você vai pagar a pensão? Também quer decidir sobre os outros bens? Estou curiosa Eduardo... sobre quais bens quer decidir? Não estaria esquecendo algo? Todos os meus bens foram adquiridos antes do nosso casamento, que por sua vez, ocorreu em regime de separação parcial de bens, ou seja, você não tem direito a nada, a nenhum dos meus bens ou propriedades. Deveria saber disso, alías, saberia, se não fosse um advogadinho tão medíocre. - terminou suspirando.
- Já vai começar com as agressões? Não pode ser adulta uma vez sequer? - respondeu alterando o tom de voz.
- Não Eduardo. Não vou começar. Não tenho mais paciencia para nada disso. Só quero uma coisa, aliás, eu nem sei porque quero isso mas, preciso que você reconheça que está com ela!
- Não começe!
- Eu sei de tudo! Sempre soube! Você e aquela secretariazinha desqualificada! Quer saber, não precisa dizer nada não... eu já sei de tudo mesmo! Tanto faz agora... vai, pode ir!
- Luisa! Ela não tem nada haver com isso... não é culpa dela... Marisa é uma pessoa boa... eu só me apaixonei! A culpa é minha se você precisa de um culpado... me culpe! - agora ele gritava.
- Eduardo, vá embora! - disse o olhando fixamente - Vá embora e vá viver sua vida com essa mulherzinha vulgar e oportunista. Mas espero que quando perceber que o que ela queria de você era o dinheiro que ela, tão burrinha como é, pensou que era seu, não resolva voltar. Não volte, pois não haverá porta aberta te esperando. - respondeu firmemente.
- Eu não vou voltar. Você pode contar com isso! - respondeu raivoso.
- Eu conto sim! Mas espero que você consiga viver sem a participação no meu escritório! Mas não me interessa saber como vai sobreviver sem o seu estilo de vida que eu financiei todos esses anos... - disse com um sorriso irônico nos lábios.
- Não se preocupe com isso. Eu vou sobreviver. E você ficará sabendo como eu me saí bem! Mas não se engane, ainda vamos nos ver muito! Ou você acha que vai conseguir me afastar de minha filha? Tenho direitos de pai Luísa!
- Sim, você tem direitos. Mas se fosse um bom advogado, tão bom quanto eu, saberia que qualquer direito pode ser contestado na justiça... e um pai que abandona a filha antes mesmo de nascer, que troca a esposa pela amante, não será visto com simpatia pelo juíz da vara da infância Eduardo... como você é tolo, meu Deus! Sabe... olhando agora, de onde eu estou, não consigo mesmo entender o que eu vi em você! Vá mesmo embora... vá...
- Luisa não precisava ser assim mas se você prefere dessa maneira então tudo bem! Adeus!
- Adeus Eduardo. - respondeu secamente olhando ele sair pela porta com as malas.
Quando a porta bateu, ela sentiu uma dor apertando o coração e aí sim, se permitiu chorar. Chorou compulsivamente, por algo em torno de uma meia hora. Foi então que começou a sentir as primeiras contrações. Chamou a empregada e pediu o motorista para levá-la ao hospital. Meia hora depois, quando passava pela entrada da emergência do hospital para ser encaminhada ao atendimento, o celular tocou. A empregada atendeu e avisou que a patroa não poderia falar e então o policial na ligação se identificou e começou a falar de um acidente envolvendo dois carros em um cruzamento. A empregada disse não entender do que ele estava falando e então o policial respondeu:
- Senhora, houve um acidente. Encontramos esse numero no celular da vítima. Precisamos falar com algum parente do senhor Eduardo Garcia.
- Eduardo? O seu Eduardo? Olha moço, a esposa dele acabou de entrar na sala de parto... o que aconteceu com o seu Eduardo moço?
Silêncio por alguns segundos e depois o policial respondeu:
- Acho que não é aconselhável avisar para a esposa dele nesse momento, mas o senhor Eduardo acaba de falecer em um acidente de carro.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Confissões de uma ladra


Eu sou uma ladra, está no meu dna, meus pais eram também ladrões. Fui adotada muito cedo, me deram educação, mordomia, mas eu já disse: está no meu dna. 
Não consigo viver sem a aventura do roubo. Saio de casa sempre as escondidas, o mais sorrateira possível - na maioria das vezes, ninguém sequer notou que saí, ou que passei a noite fora. Quando percebem me perguntam, eu não respondo. As vezes, me repreendem, me ameaçam mas sempre conquisto a confiança e o carinho deles de novo - sou dissimulada, é minha natureza. Sei ser doce, gentil e carinhosa quando me é conveniente.
Já matei e já feri. Para sobreviver, para me defender e também para me divertir. Também já fui ferida, marginais como eu, não passam impunes pela vida. Psicopata? Talvez.
Não é fácil ser quem sou, sempre dividida pela segurança de uma família e pela sede insaciável de aventuras, novidades, excitação e medo. Claro que tenho medo. Medo de falhar, medo de ser pega, medo de ser morta. Mas não troco minha vida por nenhuma outra, não invejo ninguém. Sou forte, ágil, posso escalar paredes, ando em telhados silenciosamente, entro e saio sem ser notada levando o que me interessa, quase ninguém pode gozar de uma liberdade como a minha. Na noite sou invisível, posso observar por horas sem que me notem, só esperando o momento ideal.
Existem outros como eu, muitos outros. As vezes agimos em bando, mas somos seres solitários quase todo o tempo. Certa vez houve alguém, não se pode dizer que foi uma grande paixão. Sempre o via quando estávamos em bando. Naquela noite, fugíamos de um assalto mal sucedido e acabamos nos escondendo numa casa em ruínas, abandonada. No escuro nos tocamos, nos acariciamos e nos entregamos a um cio selvagem e ruidoso. Acho que outros também se esconderam por lá, eu os ouvia se esgueirando, gemendo, cada um deles se mortificando por não ter sido o primeiro a me tocar. Isso mesmo, sou um animal, me sinto um animal. Que me importa se outros presenciaram um momento de minha intimidade? Na verdade, me senti lisonjeada em ser desejada também por outros. 
Depois, soube que ele morreu, num roubo mixuruca, atacado por um rottweiler. São cães silenciosos, traiçoeiros. Para nós, um pesadelo, não desiste fácil quando consegue acuar sua presa. Eu, grávida. 
Minha família reagiu bem, como se já esperasse. Quando nasceram - sim, mais que um - não fiquei muito tempo com eles, meu instinto maternal durou tanto quanto o leite, quase nada. Como eu, também foram adotados e como eu, também estão condenados a serem ladrões e assassinos, porque é exatamente isso que nós, os gatos, somos: marginais domésticos, amados por alguns e odiados pela maioria dos seres humanos de quem roubamos e a quem perturbamos as tranquilas noites de sono, com nossos amores escandalosos e provocações aos seus queridos vira latas.

Para Juliano, com amor.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

E então?




Parecia um tecido bem felpudo e por isso mesmo muito macio aquela parte do céu que se conseguia enxergar pelo vidro do ônibus lotado. Claro, estava muito lotado porque com certeza todos querem chegar em casa mais cedo, levarem à boca suas comidas meio frias ou requentadas num microondas quebra-galho acomodados com certo conforto num sofá em frente à tv que lhe fala sobre a previsão do tempo em São Paulo. Ali, no transporte coletivo de péssima qualidade que faz o percurso entre a universidade e o lado norte de Taguatinga, conseguira uma cadeira daquelas que ficam mais altas por estarem em cima dos pneus e, de colunas meio arqueadas para garantir a si mesma uma posição semirrelaxada - muito embora saiba que isso lhe trará problemas médicos futuros - enxerga no belo violáceo celeste o resto de uma natureza selvagem e exuberante que já predominou naquele espaço em tempos mais remotos. Antes de Jucelino? Será? Quando esse tempo, especificamente? Não seria antes mesmo de Anhanguera? Cadê a precisão destas medidas? Uma universitária, era o que ela era, devia ser capaz de elaborar com mais definição todas essas categorias e nomenclaturas que envolvem o passado, o presente e o futuro. Para onde, afinal tinham ido todas as teorias, reflexões e debates em torno da história? Pergaminhos, documentos, alfarrábios, papéis oficiais de toda ordem e toda sorte? Capítulos de livros, artigos em revistas, programas de televisão, entrevistas nas rádios, opiniões em blogs, troca de emails, presenças em videoconferências? E então...


O quê, então? Somente os sentidos e a memória.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Memória

_ Foi há muito tempo.
_ Sim, há muito tempo.
_ Lembro-me de ouvir o estalar dos saltos de seus sapatos contra os tacos do assoalho.
_ Não, não usava saltos, usava sandálias.
_ Sandálias? Como? Lembro-me do som! Lembro-me da cor! Saltos. Vermelhos.
_ Nãonãonão. Usava sandálias. Destas que chamam alpercatas, que se vendem nos mercados. Não estalavam. Tinha os pés sujos e as unhas carcomidas.
_ Pois, bem. Chegou assustada. Queria falar ao delegado.
_ Na verdade, não sabia com quem deveria falar. Encontrei-a no corredor, zanzando, muito atordoada.
_ Chegou-se ao balcão, enxugando as lágrimas em um lencinho bordado.
_ Enxugava na manga do vestido.
_ Tinha mangas o vestido? Não me lembrava...
_ Sim, mangas como de camisa, largas, quase chegavam ao cotovelo.
_ Como?
_ Acho que o vestido não era seu. Deve ter sido emprestado por alguma vizinha para que se apresentasse decente. De qualquer forma, chorava muito.
_ O marido havia desaparecido em circunstâncias misteriosas.
_ Ha! Misteriosas! Você não se lembra mesmo!?
_ O marido havia sido arrastado de casa por bandidos há dois dias e ninguém sabia lhe dizer se estava vivo ou morto.
_Sim, sim, claro. Bandidos, sequestradores.
_ Traficantes.
_ Eu me lembraria. Não me tome por tolo, uma mulher tão fina não teria marido metido com traficantes.
_ Ah, fina era mesmo. Podia passar no buraco de uma agulha de tão fina. Parecia que não mastigava nada há dias!
_ Quê?
_ A pobrezinha chegou a desfalecer enquanto registrávamos a ocorrência. O delegado pediu que alguém lhe trouxesse um café.
_ Tirou da bolsa uma fotografia do marido e...
_ Tirou sim foi dos cueiros do moleque.
_ Que moleque?
_ O que ela trazia nos braços, ué?
_ Não havia moleque algum!
_ Tinha sim. E chorava como ninguém!
_ Não estamos falando do mesmo caso.
_ Estamos sim.
_ Não, não estamos, não. Falo do caso onde o marido de uma distinta senhora foi encontrado...
_ ... morto e esquartejado, embalado em sacos plásticos, boiando na lagoa. Foi encontrado por dois moleques, pobrezinhos. Depois, ela também foi morta.
_ Sim. Que fazia aquela senhora?
_ Era lavadeira.
_ Lavadeira... Por que não me lembro das coisas assim como você?
_ Porque era bonita, a diaba! Mesmo como estava, com todas as pancadas que tomava da vida, era bonita!
_ Sim, era bonita!

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