segunda-feira, 14 de junho de 2010

Nove

Já estavam mortos quando geraram os dois filhos mais novos. Condenados por doenças infames e incuráveis. Ele pela picada de um barbeiro enquanto estocava milho no paiol, ela pela doença inominável.
Já não havia um pai quando a caçula nasceu, fora enterrado há uns cem metros da casa, para que ela pudesse ver da janela a cruz caiada de branco e um pequeno jardim de espadas de São Jorge e cristas de galo, feitos pelos sete filhos mais velhos. Estacas cercavam o pequeno cemitério para que os animais do dia, ou da noite, não perturbassem o descanso eterno daquele homem.
Dois anos depois, foi a vez dela. Morreu sozinha, num hospital, lembrando-se dos nove filhos que estavam longe, na fazenda, ou nas casas da tias para que pudessem estudar.  Pensou também naquele pedaço de sertão que ela e o marido um dia compraram, pagando com grande sacrifício, para criá-los. E agora se criariam sozinhos, no meio do mato, no meio do nada. Enterro de caixão fechado, rápido, de poucas lamúrias e muito cochichos. A única imagem que os pequenos guardariam da mãe era a de uma caixa de madeira de cor escura, com umas poucas flores por cima. Fora sepultada num cemitério de verdade, longe do marido pelo qual daria sua vida.
De volta a fazenda, uma assembleia de crianças decidia o que seria feito. Os três pequenos iriam para a cidade com a mais velha. Os meninos mais velhos voltariam para a fazenda para ajudar com a lida do gado. A outra menina maior também voltaria para cuidar dos irmãos.
Enquanto viviam o luto, morreram os gatos da mãe, como se numa praga, todos de uma só vez. Eram nove, um para cada filho, mas nenhum deles lhes tinha amor. Ao contrário, tinham sim muito rancor. Achavam que a mãe preferia os gatos, sempre roçando-lhe as pernas e os olhando com desdém. Poderia ter sido qualquer um, mas ninguém se preocupou em saber. Todos sentiam-se vingados e agradecidos até descobrirem a real função daqueles animais.
Uma noite, a mais velha adormeceu enquanto dava mamadeira a caçula. Acordou com o ardor de arranhões, achou que havia algo errado com a bebê. Tateou os móveis para encontrar os fósforos e lamparina, acendeu-a, aproximou-se da cama e horrorizou-se. Um rato roía os cabelos da irmã, onde o mingau da mamadeira havia derramado. Arrebatou a menina, o choro do susto, o coração disparado. Iluminou o quarto. Iluminou as vigas. Havia vários deles. Acendeu todas as lamparinas que encontrou ao seu redor, não dormiu protegendo a irmã e espantando os ratos de todos os cômodos onde dormiam seus outros irmãos. Ao amanhecer, arrumou o pouco há levar e partiu a cavalo com os três pequenos, acompanhada de um dos meninos mais velhos.
A praga acabou, outras vieram. Ratos, seca, carrapatos, piolhos. O tempo passava. Chegavam as férias e os nove irmãos se encontravam na fazenda. Mas parecia que cada vez mais, a fazenda se afastava do mundo, sempre mais longe. Os irmão iam se casando, vendendo suas partes aos outros irmãos e mudando-se para mais perto da cidade. Só restava o filho mais velho. Já não havia mais irmãos para cuidar. Lembrou-se de suas próprias filhas, morando na casa da tia mais velha para estudar, como ele, há muito tempo.  Vendeu a fazenda a um primo, assim poderia visitar a sepultura do pai, para orar e pedir conselhos sem resposta, como fizera ao longo de todos aqueles anos. Não voltou, nenhum deles voltou.
Quando o primo morreu, quase vinte anos depois, e a fazenda seria vendida, a filha mais velha resolveu buscar o que sobrava de seu pai. Muita burocracia, muita má vontade. Nenhum de seus irmãos quis voltar a fazenda. Sozinha testemunhou a exumação. A fazenda continuava muito longe. Chegou tarde em casa, com um saco laranja no porta malas, que não deveria estar lá. Aquilo no saco laranja, sacolejando ao longo de todo o caminho havia sido seu pai. No dia seguinte, o velho esqueleto encontraria seu par, numa sepultura que também não era visitada por nenhum dos nove filhos, ou dos dezoito netos, ou dos cinco bisnetos que nunca os conheceu.

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