segunda-feira, 31 de maio de 2010

Memória

_ Foi há muito tempo.
_ Sim, há muito tempo.
_ Lembro-me de ouvir o estalar dos saltos de seus sapatos contra os tacos do assoalho.
_ Não, não usava saltos, usava sandálias.
_ Sandálias? Como? Lembro-me do som! Lembro-me da cor! Saltos. Vermelhos.
_ Nãonãonão. Usava sandálias. Destas que chamam alpercatas, que se vendem nos mercados. Não estalavam. Tinha os pés sujos e as unhas carcomidas.
_ Pois, bem. Chegou assustada. Queria falar ao delegado.
_ Na verdade, não sabia com quem deveria falar. Encontrei-a no corredor, zanzando, muito atordoada.
_ Chegou-se ao balcão, enxugando as lágrimas em um lencinho bordado.
_ Enxugava na manga do vestido.
_ Tinha mangas o vestido? Não me lembrava...
_ Sim, mangas como de camisa, largas, quase chegavam ao cotovelo.
_ Como?
_ Acho que o vestido não era seu. Deve ter sido emprestado por alguma vizinha para que se apresentasse decente. De qualquer forma, chorava muito.
_ O marido havia desaparecido em circunstâncias misteriosas.
_ Ha! Misteriosas! Você não se lembra mesmo!?
_ O marido havia sido arrastado de casa por bandidos há dois dias e ninguém sabia lhe dizer se estava vivo ou morto.
_Sim, sim, claro. Bandidos, sequestradores.
_ Traficantes.
_ Eu me lembraria. Não me tome por tolo, uma mulher tão fina não teria marido metido com traficantes.
_ Ah, fina era mesmo. Podia passar no buraco de uma agulha de tão fina. Parecia que não mastigava nada há dias!
_ Quê?
_ A pobrezinha chegou a desfalecer enquanto registrávamos a ocorrência. O delegado pediu que alguém lhe trouxesse um café.
_ Tirou da bolsa uma fotografia do marido e...
_ Tirou sim foi dos cueiros do moleque.
_ Que moleque?
_ O que ela trazia nos braços, ué?
_ Não havia moleque algum!
_ Tinha sim. E chorava como ninguém!
_ Não estamos falando do mesmo caso.
_ Estamos sim.
_ Não, não estamos, não. Falo do caso onde o marido de uma distinta senhora foi encontrado...
_ ... morto e esquartejado, embalado em sacos plásticos, boiando na lagoa. Foi encontrado por dois moleques, pobrezinhos. Depois, ela também foi morta.
_ Sim. Que fazia aquela senhora?
_ Era lavadeira.
_ Lavadeira... Por que não me lembro das coisas assim como você?
_ Porque era bonita, a diaba! Mesmo como estava, com todas as pancadas que tomava da vida, era bonita!
_ Sim, era bonita!

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